Skip to main content

“Desde que me entendo por gente, desde o jardim de infância, sempre me encantei com cores, tesouras, colas e papéis, pintando, recortando, colorindo.

Redescobri há pouco em meus guardados alguns trabalhos de quando eu tinha seis anos de idade. Parece que a coisa começava aí, juntamente com minhas brincadeiras solitárias em um canto do quintal da minha casa, construir cidades com tijolos velhos, pedaços de mármore, ramos de plantas e de flores, por onde andavam em ruas vazias (mas cheias pela imaginação) pessoas, carros, ônibus. E ficava noite e nascia de novo um dia. Era a vida. Vida solitária de menino.

Gesto

A imagem acima mostra um trabalho que fiz como colagem em 1963, no Instituto Sagrada Família, em Belo Horizonte.

Era um começo.

Depois do ginásio fui estudar Edificações, na Escola Técnica Federal de Minas Gerais (atual CEFET). E então o encanto com o desenho surgiu de uma forma apaixonada. Desenho de arquitetura, tintas, cores, pranchas de projetos que eram verdadeiras colagens técnicas que só os iniciados entendiam, mas que, transformadas em perspectivas coloridas, dava sentido e entendimento a quem as via. Aprendi a traduzir a ideia para a imagem mais comunicativa, e a aproveitar para inserir nelas algumas notas de arte: pessoas, árvores, pedras, um céu, nuvens.

Depois fui cursar Arquitetura na Escola de Arquitetura da UFMG, em Belo Horizonte. E as descobertas da arquitetura, da arte, da técnica e da história, passaram a fazer parte do meu dia-a-dia. E com as aulas de arte, composição, projeto, geometria e tantas outras, me embrenhei mais pelas experiências de tentar fazer algo artístico com que presenteava parentes e amigos. Era bom ver aqueles desenhos (sempre sobre papel) pendurados nas paredes de suas casas.

Foi como arquiteto que consolidei minha convicção de que o papel é o amigo, capaz de receber uma ideia, um risco, um projeto.

Aprendi a desenhar e a ver as cores e as formas como expressão, traçando mapas, trabalhando rotas passadas e futuras.

O papel recebe a sequência que o gesto permite: a cor, o recorte, a cola, o pincel, o que tivermos à mão.  E aprendi que cada gesto, cada obra de arte estudada, tinha, para além de sua materialidade, um significado simbólico, que podia estar oculto ou ser revelado a uma primeira mirada do espectador.

Foi do meu interesse pela história da arte e da arquitetura, com especial atenção pelo Brasil e por Minas Gerais e a partir de excelentes mestres pioneiros nos estudos dessa matéria, que, após me formar, me tornei professor de Arquitetura Brasileira, no Curso de Arquitetura do Izabela Hendrix. De professor me tornei coordenador do curso (1992-2005) e de lá me aposentei para assumir um novo desafio: transformar – como Diretor de Conservação e Restauração do Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural de Minas Gerais, IEPHA/MG – o conjunto da Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, em um circuito cultural revitalizando e dando novos usos para prédios esvaziados pela construção da Cidade Administrativa, na zona norte de Belo Horizonte, com o traço e a arte de Oscar Niemeyer.

Foram sete anos de trabalho infelizmente interrompidos por contingências econômicas e políticas, mas que deixaram resultado. Pude visitar quase toda Minas Gerais, onde sempre há um patrimônio cultural a ser preservado, com sua história, sua arte e seus simbolismos. E após, sair do IEPHA/MG.

E então me aposentei das aulas, lembrando que também fui professor na UFMG, na PUC-MG, na Fumec, e em muitos cursos técnicos.

Durante todo esse tempo, de estudante a aposentado, nunca deixei de desenhar, pintar, construir, sempre podendo manifestar na cor e na forma – fosse na tinta de parede, guache, aquarela, cola colorida, lápis de cor –  um gesto, cada um significativo de uma fase da minha vida adulta. Qualquer instrumento ou recurso sempre me permitiu a ousadia do gesto, produzindo trabalhos que ou guardava (como tenho muitos) ou dando de presente a parentes e amigos, como sempre fizera.

Com o tempo, ainda em plena atividade profissional e de professor, fui me interessando cada vez mais pelo que se chama iconografia e iconologia, uma maneira de se ter algo como uma semiótica das artes em geral, incluindo a arquitetura e o urbanismo, a literatura, o teatro, o cinema, a paisagem da janela, as pessoas e as cidades. A vida.

Amigos que viam este meu interesse começaram a me convidar para palestras, cursos, viagens culturais, e eu fui me tornando não um especialista, mas um admirador de tudo que era simbólico nas manifestações culturais. Sobretudo me apaixonei por imagens de qualquer tipo: do original em um museu a um anúncio de revista ou jornal.

Cada dia é maior nossa possibilidade de acesso a obras de arte, seja por meio de visitas a museus e exposições, pela enorme quantidade de publicações especializadas disponíveis ou pelo rico acervo de textos e imagens que nos proporciona a internet.

Contudo, é comum deixarmos de ver as obras de arte em toda a sua riqueza, para além da percepção de sua materialidade que nos detém, quase sempre, na análise de estilos, técnicas e composições, qualidades formais que, apesar de serem úteis na sua compreensão, nos mantêm do lado de fora das obras, não nos permitindo vivenciá-las em plenitude, pois ver não é o mesmo que olhar, assim como ouvir não é igual a escutar. Ver envolve apenas o esforço de abrir os olhos; olhar significa abrir a mente e usar o intelecto.

Olhar uma obra de arte é como partir para uma viagem com muitas possibilidades, e como em qualquer viagem, quanto melhor a preparação, mais gratificante será a expedição. A melhor maneira de viajar é com um guia que nos ajude a nos familiarizar com o novo ambiente e que nos mostre coisas que, quase sempre, passariam despercebidas.

Muitas obras usam extensamente uma linguagem de simbolismo e alegoria que na época era compreendida tanto pelos artistas como pelo público. Os objetos reconhecíveis, pintados em detalhe, não representam apenas eles mesmos, mas conceitos de significado mais profundo e abstrato. A familiaridade do público com esta linguagem diminuiu muito, mas ela pode ser redescoberta pelo estudo das obras, de seu significado e das crenças da sociedade que formou o artista.

Foi essa a diretriz e o meu propósito ao ministrar cursos de Iconografia e Iconologia, na linha de mestres antigos e novos, brasileiros e estrangeiros, dos quais destaco dois: Aby Warburg (1866 – 1929) e Erwin Panofsky (1892 – 1968). A partir deles e com o outros, comecei a encontra um caminho.

Para mim, continuo me orientando pela prática de Erwin Panofsky, para quem a obra de arte passa por duas etapas de interpretação (na verdade podem ser muitas mais). A iconografia trata do tema de uma obra (por exemplo, a Santa Ceia). Já a iconologia busca o significado intrínseco da obra, o espirito de sua época, suas fontes literárias e uma possível mensagem do autor. Todas as obras de arte (figurativas e não figurativas) possuem estruturas a serem decifradas.

E revendo o que havia feito em termos de trabalhos artísticos, restaurações, arquitetura, urbanismo ou um design de interiores, uma coerência capaz de ser mapeada e ordenada de maneira que, se tudo pudesse ser posto lado a lado, de modo que as formas, imagens e gestos pudessem conversar, haveria, talvez, uma história para ser contada. E pela qual as pessoas pudessem se interessar.

Com o convívio com o escritor Lino de Albergaria, a amiga Denise Gontijo, a artista e promovedora da cultura Cássia Duarte e tantos outros que me incentivaram, cheguei à Patrícia de Deus, com sua loja/galeria/escola que me propiciou agora esta primeira chance de reunir alguma obra recente, mas que retratará uma trajetória muito grande e incansável. Cansaço bom depois de concluir alguma coisa.

Para a exposição proposta, pensei em produzir colagens na técnica dos “papiers collés” em que o papel é aderido a uma montagem plana, diferente de uma colagem que pode incorporar componentes bidimensionais (objetos, por exemplo). Na verdade, incorporei pedaços de papelão, jornais e pedaços de plástico, mas o forte da produção é o papel colado e cor, seja de outros papéis seja tintas de diversos tipos.

E então, iniciada a produção, fui assaltado por sombras, fantasmas, seres abissais ou imaginários, conscientes ou vindos do inconsciente, algo onírico, como se eu pudesse compor o meu Jardim das Delícias, buscando signos no jardim de Hieronymus Bosch (1503–1515).

Para mim tudo vem compor um tapete mágico – aliás este é o nome da obra que resumirá, na fachada da galeria Patrícia de Deus o que os visitantes curiosos poderão ver em molduras e em montagens simples em formatos diferentes.

Cada pessoa tem o direito de levar para uma obra de arte o que quiser levar, por meio da sua visão e da sua experiência, e guardar o que decidir guardar, no nível pessoal. A mostra pode causar estranhamento, repulsa ou deleite e dúvida. O objetivo do meu gesto é esse.

Papel, tintas, colas e recortes. Mais que uma técnica, sinalizam meu caminho”.

Renato Cesar José de Souza

O texto acima é um relato pessoal de Renato Souza, artista responsável pela exposição Gesto, Tecendo um Tapete de Memórias. Para nossa honra e alegria, as obras de Renato ficam expostas em nosso Espaço de Arte até o dia 27 de agosto, mês de aniversário da PdD.

Abaixo, você confere algumas imagens da abertura da exposição, que aconteceu no dia 13 de julho: